sexta-feira, outubro 30, 2009

cherchez la femme - pequenos retratos

Ela é branca (ela se acha muito branca). Talvez a única neve que conheci em vida. Ou muita luz. Ou cegueira. São muitos os pontos de vista, são muitos os meus olhos. E mesmo assim eles insistem em vê-la sempre de forma inédita (flocos de neve refletindo as cores do arco-íris, uma por uma).

sábado, outubro 24, 2009

Hilda Hilst

Ser terra
e cantar livremente
o que é finitude
e o que perdura.

Unir numa só fonte
o que souber ser vale
sendo altura.

quarta-feira, outubro 21, 2009

Divagações sobre um cacto em forma de coração

Um coração de espinhos acende o centro da sala,
luz sobreposta nos poços de sombra,
penumbra escorrendo pela parede
feito um rio desalinhado.

Talvez fossem resquícios de sonhos,
antigos vícios, outras luzes,
outras paisagens.

(um coração em forma de cacto,
ou um pacto contra o deserto dos dias)

Talvez uma lembrança que ali nasce,
logo antes de acontecer.
Uma surpresa aguardando sua vez,
pequenas revoluções que não entram
nos livros de história.

Um coração de espinhos nasce no centro da sala,
e um dia nascerá como outra luz, vício saudável,
uma nova paisagem.

(os espinhos nada mais são que raios de luz
congelados em seu início,
resquício do tempo inerte e inacessível:
o Tempo)

domingo, outubro 18, 2009

poema antigo - Primeira indagação

Qual, a primeira saudade?
(se é que podemos numerá-las –
talvez tudo seja uma face da saudade,
da mesma saudade)

Qual é o ponto inicial, o primeiro
gesto ou palavra,
que desencadeia uma rede de sentimentos
que se encontram em um só?

Talvez o ato inaugural,
o primeiro foguete à lua,
a visão da terra azul,
a primeira bandeira no cume,
talvez sejam estes o primeiro crime:

estar fora de órbita
quando tudo ainda é alcançável,
saber que sentirá saudades.

quarta-feira, outubro 14, 2009

Esboço para a história de Matias - parte 1

Se eu pudesse ter acesso, poderia ser apenas por alguns minutos, a como ela pensa e funciona. Como destrinchar um relógio, conhecer cada engrenagem, me habituar a elas, ver o que há por trás de cada peça, depois juntá-las, agora fazendo que o tempo seja outro. Deve haver uma ordem secreta das coisas, se um relógio for alterado, todos os outros se alterarão também, para sempre.

Matias correu pelo parque, querendo ser outro. Já havia uma semana que corria regularmente pelas manhãs, dando voltas e mais voltas, do ponto A ao B, voltando ao A e assim ia, rodando como um ponteiro, exato em toda sua tentativa de mudar, outra vida, outros ares. Brincava com os cachorros e sorria para as donas, que passeavam com suas longas pernas expostas ao verão. Mas era tudo mecânico, como um relógio.
Não importava quantas voltas desse, uma hora teria que voltar para sua casa. Corria o quanto dava, transpirava até derreter, menos si mesmo, se misturando a tudo e todos do parque, mas não havia fuga.
Em casa, olhava fixamente o computador. O editor de texto aberto, transcrevia a fala cadenciada do entrevistado, um fotógrafo social que agora falava de seu trabalho rotineiro. O casamento dos outros, a formatura do filho dos outros, o batizado, as bodas, o aniversário de cem anos da bisavó de alguém. Participando ao não participar da vida dos outros. Aos poucos, Matias percebeu que só escutava, não mais digitava as palavras do entrevistado.

Um biólogo realmente sabe das plantas? Pode saber de todos seus mecanismos, como se reproduzem, se alimentam, como conseguem sobreviver a um ambiente fértil ou hostil, tudo. Mas não acho que realmente saibam o que é uma planta. A vida da planta não se explica biologicamente. Um jardineiro sabe muito mais da vida do que um biólogo.

Deixou o computador, foi até o jardim da sua casa. João, que dividia a casa com Matias, havia acordado e já começara seu ritual diário: música alta, acompanhando a música com um péssimo inglês. Bom humor demais, quase euforia. Não era possível que fosse tudo sincero. Matias, com uma grande tesoura de jardinagem, caminhava para suas plantas, o que mais lhe dava prazer ultimamente. Cuidar das plantas. Nada tão objetivo, mesmo envolto em tanto mistério. Ali achava que exercia um certo controle. Se não controle, influência direta. Elas dependiam dele, ele dependia delas. Imaginava que o sentimento deveria ser parecido com o de ter um filho, mas não saberia. Não os tinha, a futura mãe de seu filho não poderia mais ser a futura mãe de seus filhos, não tinham mais nada, nem mais se olhavam nos olhos direito, quando se cruzavam nos bares comuns, nas ruas comuns aos dois. Voltar às plantas, se concentrar nas plantas. Elas precisavam dele, ele precisava delas.

Ela deve estar olhando através duma janela agora, para uma paisagem que passa e deixa algumas coisas. Ela pensa em mim, quando pensa em si, nas árvores que cortam a vista, sumindo e voltando? Todas as árvores a árvore. Todas a mesma árvore. Música nos ouvidos, flutuando dentro do ônibus, fugindo de algo, voltando para a outro. De qualquer maneira, para longe daqui. Preciso escrever para ela, falar das entrevistas, das plantas, das corridas matinais, das eleições, criticar o prêmio Nobel, perguntar de seu pai, falar de minha mãe, comentar das gérberas que morreram e das que vão nascer. Qualquer coisa, mas sei que não vou falar nada.

Matias enfiou a mão na terra fofa e a deixou ali por alguns instantes, sentindo o frio da terra contra o calor excessivo. João apareceu na janela e acabou com o silêncio reflexivo de Matias, ao cantar para ele um samba-canção, como se fosse a Julieta do alto da janela quem declamasse para um Romeu apaixonado lá embaixo. Matias riu.

mutação

só pensando (e lembrando) em como o mesmo sentimento vai mudando como um sonho, que dispensa regras de continuidade e lógicas simples. Um dia é cansaço, no outro saudade, depois raiva, aí volta saudade, aí é saco cheio, depois sorriso discreto, esperança, que vira luto. Isso nos dias que você consegue dar nomes e limitar o que está sentindo. Mas é constante e é um sentimento só.

segunda-feira, outubro 12, 2009

Rastros

Como seguir rastros de tornados,
determinar início e fim,
encontrar caminho no caos,
que só o centro,
o olho (“The I of the hurricane”),
vê.

Tarefa impossível que a escrita
confunde em pistas falsas.
outras mãos escrevem a história,
não estas.
Outros olhos fixos no centro do giro,
não estes.
(quase uma comédia com Peter Sellers
ou uma foto de Koudelka –
estar fora do lugar como
o máximo do estar)

Como andar por ruas iguais,
entre adolescentes e executivos iguais,
todos com cabelos iguais e o mesmo olhar.
E o medo de tudo ser espelho ou
janela para um tempo dividido,
irreconciliável.

Um tempo em que eu não mais
me distanciasse, nem tivesse
o faro dum detetive livresco
ou qualquer herói eleito.
Este tempo quebrado,
de trechos de filmes
(imagens soltas sem sopro ou surpresa),
de frases perdidas, imperdoáveis
(Hamlet escalando a montanha mágica,
Leopold Bloom caminhando pelo Rio de Janeiro).
O Tempo que se pensava indivisível,
o maior e primordial átomo,
agora em estilhaços
(ou esteve despedaçado, ou estará,
quem sabe? Quem está fora do pesadelo
e realmente sabe?
Como aquela vez em que estive num jardim sem vento
ou na pedra que apontava para morros milhares de metros
abaixo.)

Pensar então fora do tempo
– impossível como perseguir tornados –
mas tentamos, eu tento.

E separo-me de todos os outros,
dos espelhos, do tornado, das janelas,
gerânios, guerras, gueixas, carros,
costas e mares, amores, peixes, flechas,
e choros.
Separo-me das chaves, das vistas, cheiros, dores,
dia-a-dia, poemas pela metade, noites e mortes
pela metade...
Tudo se misturando até perder os nomes,
as linhas divisórias, anti-geografia
da linguagem, anti-literatura
das bocas, o calar da história
dos ouvidos.

Até que desapareçam todos os rastros do tornado.
Quando a calmaria baixar sobre as cidades
e cegar os postes e faróis,
não haverá nem olho para que isso exista,
e o tempo voltará a reinar,
imperativo.

sábado, outubro 10, 2009

Mantra

Estar perdido nas próprias palavras,
quando se acorda logo de manhã e
o sol já desistiu da janela.
Nenhum traço de luz nos lençóis,
nem de voz no vão do quarto.

Cada vogal toma seu tempo
e erra.
Cada consoante interrompe o ar
e erra.

Errante entre o espaço exíguo,
(a vida às vezes venta leve
e violenta os olhos cansados)
exilado, exímio em não saber
estar, estando como pode,
até não mais caber em si.
Buscar um nós que não mais está...

Ao tatear palavras tatuadas no corpo,
no torso arqueante,
que respira a vida leve e a devolve
pesada, pesada.

Pé após pé,
o mantra que canta
enquanto a melodia
se cansa.

quarta-feira, outubro 07, 2009

Robert Capa por Michael Mann

Comecei a postar no blog da livraria cultura

http://cultura.updateordie.com

terça-feira, outubro 06, 2009

"Cuántas luces dejaste encendidas" de Hugo Gutierrez Vega

Un amor sentencioso alzó la mano
y señaló el camino hacia lo incierto,
hacia lo que no fue, hacia esa nada
que en la mitad del pecho va latiendo
como el corazón falso de la vida, vuelto piedra
y la piedra en el campo va gritando.

La cantina y su rincón oscuro,
las palabras cansadas de rogarle,
el círculo dejado por la copa,
la pedida canción, el abandono
y ese perdido amor con el tequila
servido ya cuando la noche pide
sólo one for my baby and
one more for the road
.

Todo se junta en la canción dolida,
hay un stormy weather
y a la casa encendida volverán los amores;
ella regresa y si no regresara
intentar apagar todas las luces
será tarea emprendida por la muerte.
"El esplendor tan encendido antaño"
no volverá y no hay que entristecerse,
quedaron muchas luces encendidas
y se amanece siempre entre sus brazos.