domingo, janeiro 31, 2010

de uma conversa com Rafael

Temos vivido sob um céu
de technicolor,
você bem disse.

Esta vida de cores artificiais,
nuvens rosas artificiais.
O chão escuro e falso que piso
(cadafalso,
lapso de espaço
entre ruínas, entre palavras)

Nossos olhos preto-e-branco
nada podem contra o mundo,
e nem estas palavras,
nem algum gesto à Arthur ou Brancaleone.

Mas nada adianta também
responder ao mundo com rudeza,
nada que tente desfazer os pactos diários,
que o sol, pastor dos dias, vai perdendo de seu rebanho,
nada que soe como desespero, desdém,
as palavras e cores que guardamos
nos desvãos da casa
ou qualquer canto que aprendemos a chamar de lar.

Nós, que no desterro de outros céus
agora desaprendemos suas cores.

Nós, que avançamos os dias
como uma marcha rumo a precipícios
e outras noites,
onde as cores artificiais
ganham ar de verdade
e o sons com hálito de álcool
florescem e fenecem em ouvidos sujos
mas puros, espero,
ingênuos,
todos refletindo e sendo iluminados
por estas cores.

Nós, que às vezes chamamos de sol
os postes amarelos e as luzes dos faróis.
Nos livram de algumas rochas,
criam caminhos, algumas pontes,
alguns píeres...
Mas quem somos nós
para separar o real do ilusório?
O verde do verde, o azul do azul?
As noites da noite?

Mas quem somos nós?

quarta-feira, janeiro 20, 2010

Vozes

Já era sabido
do estampido de pólvora seca de sua voz
percorrendo-me até a raiz dos meus pés,
fixando ao chão minha gravidade pessoal,
órbita particular e livre
(prisão seria a fuga,
um mundo inteiro de exílio,
hesitação, portas demais).

Já era sabido
do rugido incapaz de rasgar janelas.
Não se matava um leão por dia,
os colocava para dormir com doses
de voz mansa e promessas de outras
manhãs.

(Sempre haverão outras manhãs,
e depois mais outras,
escondendo as noites atrás das pálpebras.)

E mais palpável do que o já sabido
só o improvável riso no meio da rua,
rio,
as águas inundam todas as vozes.
(Embargam a minha)

domingo, janeiro 10, 2010

guardanapos de papel - milton

Na minha cidade tem poetas, poetas
Que chegam sem tambores nem trombetas
Trombetas e sempre aparecem quando
Menos aguardados, guardados, guardados
Entre livros e sapatos, em baús empoeirados
Saem de recônditos lugares, nos ares, nos ares
Onde vivem com seus pares, seus pares
Seus pares e convivem com fantasmas
Multicores de cores, de cores
Que te pintam as olheiras
E te pedem que não chores
Suas ilusões são repartidas, partidas
Partidas entre mortos e feridas, feridas
Feridas mas resistem com palavras
Confundidas, fundidas, fundidas
Ao seu triste passo lento
Pelas ruas e avenidas
Não desejam glorias nem medalhas, medalhas
Medalhas, se contentam
Com migalhas, migalhas, migalhas
De canções e brincadeiras com seus
Versos dispersos, dispersos
Obcecados pela busca de tesouros submersos
Fazem quatrocentos mil projetos
Projetos, projetos, que jamais são
Alcançados, cansados, cansados nada disso
Importa enquanto eles escrevem, escrevem
Escrevem o que sabem que não sabem
E o que dizem que não devem
Andam pelas ruas os poetas, poetas, poetas
Como se fossem cometas, cometas, cometas
Num estranho céu de estrelas idiotas
E outras e outras
Cujo brilho sem barulho
Veste suas caudas tortas
Na minha cidade tem canetas, canetas, canetas
Esvaindo-se em milhares, milhares, milhares
De palavras retrocedendo-se confusas, confusas
Confusas, em delgados guardanapos
Feito moscas inconclusas
Andam pelas ruas escrevendo e vendo e vendo
Que eles vêem nos vão dizendo, dizendo
E sendo eles poetas de verdade
Enquanto espiam e piram e piram
Não se cansam de falar
Do que eles juram que não viram
Olham para o céu esses poetas, poetas, poetas
Como se fossem lunetas, lunetas, lunáticas
Lançadas ao espaço e ao mundo inteiro
Inteiro, inteiro, fossem vendo pra
Depois voltar pro Rio de Janeiro