A água do mar ondula levemente para direita, num ritmo constante e ininterrupto. Quase é possível ver o vento que provoca esta maré eterna, imutável. Um jogo de luz tinge a água – o sol se põe vermelho atrás da escura ilha. Logo acima do sol, após o céu vermelho terminar, pende uma decoração natalina que permanece ali durante todo ano. E esta decoração passa também por cima dos outros quadros com jogos de luz que simulam o movimento das águas. Próximo à decoração natalina há motivos japoneses – bolas coloridas e lanternas chinesas.
Abaixo disso tudo há um corredor estreito com mesas de ambos os lados, que nos finais de semana estão sempre cheias. Pelo corredor passa gente de todo tipo, entrando e saindo – modernos, descendentes de japoneses, roqueiros, jogadores de futebol, atores, universitários – todo tipo de gente que está ali por causa da comida japonesa, dos espetinhos ou do karaokê. Esta é a Choperia Liberdade, uma das muitas casas de karaokê do bairro Liberdade, em São Paulo.
Seguindo o corredor da porta de entrada, toda a perspectiva leva o olhar ao pequeno palco, que mais esconde quem canta do que mostra. O palco fica elevado a quarenta centímetros do chão, e nele cabe mais ou menos cinco pessoas cantando ao mesmo tempo, apertadas (embora sempre tentem desafiar a lei da física, seis ou sete corpos tentando ocupar o mesmo espaço). Em frente ao palco há um púlpito, que quase o cobre por inteiro. Neste púlpito está a televisão, onde passa a letra da música para quem está cantando, um cinzeiro e dois vasos de flores. Pendendo do teto algumas lanternas chinesas e a decoração natalina, que está por todo o corredor, da entrada até o palco. Atrás de quem canta a parede é coberta por espelhos.
Em frente ao palco há uma pista com um telão em frente, onde se acompanha a letra e as imagens de fundo, que vão de paisagens bucólicas até pequenos vídeos japoneses que interpretam algumas músicas. Há mais mesas do lado esquerdo da pista, e o bar continua para os fundos, onde se encontra uma churrasqueira, mais mesas, máquinas de aposta e quatro boas mesas de sinuca, que nunca ficam desocupadas.
Mas a atração principal é o karaokê. Dezenas de vozes esganiçadas passam pelos microfones todas as noites. Algumas vozes são boas, claro, sempre há exceções. Porém mais do que uma voz bonita, o que se espera dos cantores de ocasião é a performance e os hits. Algumas músicas sempre tocam – Evidências (“chega de mentiras, de negar o meu desejo, eu te quero mais que tudo..”.) sempre é cantada a plenos pulmões por muitos; Fogo e Paixão, do Wando (“você é luz, é raio estrela e luar, manhã de sol, meu iaiá, meu ioiô..”.) sempre arranca uivos da platéia; Hey you, do Pink Floyd, sempre é cantada por Ed, um homem com um comprido rabo de cavalo e um bigode à modo antiga, além da pochete logo abaixo do umbigo; Akira sempre canta sucessos internacionais e músicas japonesas, e é um dos que sempre são ovacionados no palco; Madonna faz sucesso entre as mulheres e o Rei Roberto é cantado em uníssono pela platéia de todas as idades.
A performance vai além do hit. Vale cantar Unchained Melody, música tema de Ghost, interpretando-a como se Maria Bethânia a cantasse, vale um rapaz cantar Blitz com duas backing vocals, como se estivéssemos novamente nos anos 80 vendo Evandro Mesquita destilar toda sua “carioquicidade”. Vale tudo, até cantar esta música do Tim Maia (isso se você considerar que esta música não irá desagradar o público GLS, que também é freqüentador desse microcosmo paulistano em forma de karaokê).
Quem comanda a ordem das músicas é Mama, a matriarca do lugar. É uma senhora japonesa de expressão fechada, o queixo levemente projetado à frente, o rosto pálido carregado de maquiagem, tudo isso intensificando sua pose de má. Como uma boa líder, ela sabe a hora de dar bronca e a hora de dar um sorriso. Há testemunhos que afirmam ela já ter jogado papeizinhos com o número das músicas, puramente por quem ter feito o pedido ser um desafeto seu. Ela anota na comanda do cliente e recebe os papéis com o número da música escolhida. Depois os coloca em ordem e chama a pessoa de quem for a vez. Ela os ordena não por ordem cronológica, mas os arruma de forma que a mesma pessoa não cante muitas vezes seguidas, ajeita tudo para que seja mais justo - lógico que segundo seu raciocínio. Ela faz as leis e ela mesmo as executa. Há sempre discussão em volta dela – pessoas reclamando da demora para chegar suas vezes; pessoas que querem cantar músicas de outros. Mas ela sempre impõe respeito com sua expressão fechada e voz de comando, voz de quem já ouviu muita gente que canta mal reclamar.
Outro fato que sempre causa furor é a presença de Paulo César Pereio, ator importante na história do cinema brasileiro. Quando passa em frente ao palco, rumo às mesas de sinuca, onde passa geralmente toda madrugada, é ovacionado com frases que um dia foram suas:
“Eu te amo, porra!”
“Só toca em mim casando!”
“Só casando!”
Os gritos de Peréio!, as fotos e os cumprimentos são tratados com certa frieza, não antipática, de quem já cansou disso, mas de quem quer sossego. Mas lá no seu canto, na sinuca, raramente alguém o incomoda.
Outros famosos freqüentam o lugar. Vampeta quando visitou o karaokê ouviu inúmeros pedidos para voltar ao Corinthans e salvar o time do ano ruim. A Pitty saiu brava e apressada do karaokê quando viu que estavam cantando um de seus sucessos, a música Equalize. Mas são os anônimos que dão o tom do lugar, e são eles que vão ao palco, invertendo a lógica do show business.
O lugar atravessa a madrugada, sempre gente chegando e indo embora, o que renova a trilha sonora e visual do bar. Há sempre algo novo e insólito para se olhar, alguém divertido para se conversar ou um estranho com quem possa dividir o palco. Conforme a madrugada vai chegando ao fim, o ritmo do entra e sai diminui e o karaokê ganha um tom intimista: a voz de quem canta não compete contra um enorme burburinho de conversas, nem toda roda de amigos é cortada por garçons ensandecidos que não dão conta de atender a todos.
Independente do que houve na noite – brigas de voar cadeira, quatro pessoas beijando o mesmo beijo, músicas ruins, músicas boas, o mau-humor de Mama, os sushis e temakis do chef de comida japonesa que é nordestindo, independente de toda água que corre sem nunca sair do lugar nos quadros espalhados por todo bar, a noite acaba com o nascer do sol e a Choperia Liberdade fecha, quando os postes japoneses do bairro já estão apagados.