"De tudo haveria de ficar para nós um sentimento longínquo de coisa esquecida na terra - como um lápis numa península".Manoel de Barros em Livro sobre Nada
Ela acredita nos sonhos. Não o óbvio, que os sonhos carregam significados que dizem respeito a algo muito fundo em você, o submerso emergindo quando se deita no escuro do ser. O sonho - o ser não sendo, o quando sem tempo. Ela conta os sonhos como fatos, fotos que são quase inegáveis, o ver não vendo. E quando acorda, o fluxo das imagens não param, só se transformam em palavras vivas, uma após a outra, sonhos vividos. E se alguém matou outro no sonho, é um assassino na vida real. Se alguém pintou um quadro, é um artista na vida real. Mas quando a vida real é um pesadelo, ela gosta de pensar que os sonhos só sabem mentir.
Meu catavento tem dentro o que há do lado de fora do teu girassol Entre o escancaro e o contido, eu te pedi sustenido e você riu bemol Você só pensa no espaço, eu exigi duração Eu sou um gato de subúrbio, você é litorânea
Quando eu respeito os sinais vejo você de patins vindo na contramão Mas quando ataco de macho, você se faz de capacho e não quer confusão Nenhum dos dois se entrega, nós não ouvimos conselho Eu sou você que se vai no sumidouro do espelho
Eu sou do Engenho de Dentro e você vive no vento do Arpoador Eu tenho um jeito arredio e você é expansiva, o inseto e a flor Um torce pra Mia Farrow, o outro é Woody Allen Quando assovio uma seresta você dança havaiana
Eu vou de tênis e jeans, encontro você demais, scarpin, soiré Quando o pau quebra na esquina, cê ataca de fina e me ofende em inglês É fuck you, bate bronha e ninguém mete o bedelho Você sou eu que me vou no sumidouro do espelho
A paz é feita num motel de alma lavada e passada Pra descobrir logo depois que não serviu pra nada Nos dias de carnaval aumentam os desenganos Você vai pra Parati e eu pro Cacique de Ramos
Meu catavento tem dentro o vento escancarado do Arpoador Teu girassol tem de fora o escondido do Engenho de Dentro da flor Eu sinto muita saudade, você é contemporânea Eu penso em tudo quanto faço, você é tão espontânea
Sei que um depende do outro só pra ser diferente, pra se completar Sei que um se afasta do outro, no sufoco, somente pra se aproximar Cê tem um jeito verde de ser e eu sou meio vermelho Mas os dois juntos se vão no sumidouro do espelho
The city exulted, all in flowers. Soon it will end: a fashion, a phase, the epoch, life. The terror and sweetness of a final dissolution. Let the first bombs fall without delay.
Fazer o que seja é inútil. Não fazer nada é inútil. Mas entre fazer e não fazer mais vale o inútil do fazer. Mas não, fazer para esquecer que é inútil: nunca o esquecer. Mas fazer o inútil sabendo que ele é inútil e que seu sentido não será sequer pressentido, fazer: porque ele é mais difícil do que não fazer, e dificil- mente se poderá dizer com mais desdém, ou então dizer mais direto ao leitor Ninguém que o feito o foi para ninguém.
a cobertura midiática de eventos criminosos é sempre espantosa. Principalmente de eventos onde a identificação de todos é mais fácil: um casal comum, com um fim de namoro corriqueiro, mas que uma das partes não aceita tão bem. Todo mundo pode se relacionar a isto. Mas, de repente, algo extremo - reféns, ameaça, morte. Com essa parte não nos identificamos, ao menos conscientemente, ou queremos pensar que não. Esse é o ponto: qualquer um é capaz de atos extremos. Qualquer um. Uma frase do Terêncio, dramaturgo romano de muito muito tempo atrás, sempre volta a minha mente, sempre causa um efeito de estar diante de muita sabedoria: sou humano, nada do que é humano me é estranho.
A sensação que fica, no final das contas, é que toda essa cobertura da mídia é a tentativa de dar sentido a algo tão díspar, tão "desumano". Admitir que o mundo é imprevisível é amedrontador. Admitir que o ato dele é totalmente humano também é amedrontador. É preciso pintá-lo como um monstro, como alguém que nunca vamos ver ao olharmos num espelho.
Qual a mensagem dum apartamento sem móveis? Um apartamento com caixas cheio de coisas que não se sabe o dono, que não tem lugar, mas que ocupa o mesmo espaço a mais de dois anos? Uma gaveta sem cômoda ou armário que guarda dvds, uma mesa de bar segurando uma televisão, uma outra caixa coroada por um video-game.
Um apartamento sem alma é um lugar provisório. Não há móveis porque a qualquer momento pode se ir embora, esse lugar é um limbo, um espaço transitório entre o antes e o depois.
Mas o antes é algo que nem se lembra mais, de tão longe. O depois é ainda mais indefinido, uma névoa cinza, ou azul ou negra ou branca, qualquer cor que represente o dia.
Moro num lugar pronto para a mudança - se decidir ir embora agora, tudo é muito fácil de se arrumar. Moro num lugar que diz: não viemos pra ficar, não sabemos pra onde ir.
Considerei o riso entre estranhos Uma dádiva divina, Como se contivesse mais do que se via
(como se fosse possível a água, Ao transbordar de um copo, Não escorrer pelas laterais E sim subir E continuar subindo, Uma coluna de firme fragilidade)
Considerei este riso e mais: Os meio-abraços, Confissões com hálito de álcool, Gestos desmedidos De leveza premeditada
mas as metáforas mataram a noite
Tudo que eu escondia Apareceu em meu olhar Quando o encontrei num Esfumaçado espelho: Não me reconheci E pensei estar vendo o mundo Ao contrário