Se eu pudesse ter acesso, poderia ser apenas por alguns minutos, a como ela pensa e funciona. Como destrinchar um relógio, conhecer cada engrenagem, me habituar a elas, ver o que há por trás de cada peça, depois juntá-las, agora fazendo que o tempo seja outro. Deve haver uma ordem secreta das coisas, se um relógio for alterado, todos os outros se alterarão também, para sempre.
Matias correu pelo parque, querendo ser outro. Já havia uma semana que corria regularmente pelas manhãs, dando voltas e mais voltas, do ponto A ao B, voltando ao A e assim ia, rodando como um ponteiro, exato em toda sua tentativa de mudar, outra vida, outros ares. Brincava com os cachorros e sorria para as donas, que passeavam com suas longas pernas expostas ao verão. Mas era tudo mecânico, como um relógio.
Não importava quantas voltas desse, uma hora teria que voltar para sua casa. Corria o quanto dava, transpirava até derreter, menos si mesmo, se misturando a tudo e todos do parque, mas não havia fuga.
Em casa, olhava fixamente o computador. O editor de texto aberto, transcrevia a fala cadenciada do entrevistado, um fotógrafo social que agora falava de seu trabalho rotineiro. O casamento dos outros, a formatura do filho dos outros, o batizado, as bodas, o aniversário de cem anos da bisavó de alguém. Participando ao não participar da vida dos outros. Aos poucos, Matias percebeu que só escutava, não mais digitava as palavras do entrevistado.
Um biólogo realmente sabe das plantas? Pode saber de todos seus mecanismos, como se reproduzem, se alimentam, como conseguem sobreviver a um ambiente fértil ou hostil, tudo. Mas não acho que realmente saibam o que é uma planta. A vida da planta não se explica biologicamente. Um jardineiro sabe muito mais da vida do que um biólogo.
Deixou o computador, foi até o jardim da sua casa. João, que dividia a casa com Matias, havia acordado e já começara seu ritual diário: música alta, acompanhando a música com um péssimo inglês. Bom humor demais, quase euforia. Não era possível que fosse tudo sincero. Matias, com uma grande tesoura de jardinagem, caminhava para suas plantas, o que mais lhe dava prazer ultimamente. Cuidar das plantas. Nada tão objetivo, mesmo envolto em tanto mistério. Ali achava que exercia um certo controle. Se não controle, influência direta. Elas dependiam dele, ele dependia delas. Imaginava que o sentimento deveria ser parecido com o de ter um filho, mas não saberia. Não os tinha, a futura mãe de seu filho não poderia mais ser a futura mãe de seus filhos, não tinham mais nada, nem mais se olhavam nos olhos direito, quando se cruzavam nos bares comuns, nas ruas comuns aos dois. Voltar às plantas, se concentrar nas plantas. Elas precisavam dele, ele precisava delas.
Ela deve estar olhando através duma janela agora, para uma paisagem que passa e deixa algumas coisas. Ela pensa em mim, quando pensa em si, nas árvores que cortam a vista, sumindo e voltando? Todas as árvores a árvore. Todas a mesma árvore. Música nos ouvidos, flutuando dentro do ônibus, fugindo de algo, voltando para a outro. De qualquer maneira, para longe daqui. Preciso escrever para ela, falar das entrevistas, das plantas, das corridas matinais, das eleições, criticar o prêmio Nobel, perguntar de seu pai, falar de minha mãe, comentar das gérberas que morreram e das que vão nascer. Qualquer coisa, mas sei que não vou falar nada.
Matias enfiou a mão na terra fofa e a deixou ali por alguns instantes, sentindo o frio da terra contra o calor excessivo. João apareceu na janela e acabou com o silêncio reflexivo de Matias, ao cantar para ele um samba-canção, como se fosse a Julieta do alto da janela quem declamasse para um Romeu apaixonado lá embaixo. Matias riu.